24.12.02

Quatro dias em Porto Alegre, dormindo num hotel horrível e lidando com o Darcy durante o dia todo. Agüentar o Darcy não é fácil. Anel de ouro no mindinho, camisas e gravatas em tons pastéis, cabelo empapado em gel. E fala com a gente e vai chegando perto. Você dá um passo para trás, ele avança, parece que está dançando. Com a proximidade excessiva, o cheiro do perfume barato que usa, misturado com o dos cravos que mastiga sem parar, faz-se mais evidente. Não é fácil, o Darcy. Mas pelo menos fico um pouco longe da balbúrdia em que se tornou nosso apartamento agora que minha namorada enfiou na cabeça que vai ser decoradora. Ainda descubro quem foi que deu essa idéia a ela. Meu Deus, a mania de limpeza era bem melhor! Tudo bem, tudo bem. Ao menos por esses dias estou livre das loucuras dela. O único problema é essa cidade toda decorada para o Natal. Odeio Natal. Tenho ganas de estapear todo Papai Noel que cruza meu caminho, de sair arrancando e pisoteando aqueles enfeites que as pessoas penduram na fachada das casas. Fico me imaginando andando pelas ruas com uma tocha na mão, queimando guirlandas, renas, papais-noéis. Seria lindo... Mas não posso fazer nada disso, então vou me contendo.
E nem tenho muito tempo para pensar nessas coisas. Negociar o contrato com o Darcy tem sido uma pedreira. Uma hora ele quer descontos absurdos, outra hora quer parcelamentos impraticáveis, depois quer prazos de entrega inadmissíveis. Aos poucos, no entanto, vamos avançando. Eu achava que ia resolver tudo em um dia, no máximo dois, e ter dois dias para conhecer a cidade, mas acho que não vai dar: Os dois primeiros dias foram de expediente até tarde, negociações intermináveis, telefonemas de um e de outro lado, um inferno. Terminado o expediente (lá pelas nove ou dez da noite), só tenho mesmo vontade de voltar para o hotel e tentar dormir. Sim, tentar, porque o lugar parece mal-assombrado. Lembra um pouco o Overlook Hotel, d'O Iluminado. Não, mentira. Eu que não gosto de hotéis. Um medo besta, porém real. Entro no quarto fazendo barulho e acendendo todas as luzes. Sei o quanto isso é ridículo, e jamais faria o mesmo se estivesse com alguém. Sozinho, porém, é melhor garantir que todos os fantasmas tenham tempo de se esconder quando eu chego. Tenho raiva de mim mesmo por agir assim, mas não consigo evitar. Num hotel, qualquer coisinha me assusta. Hoje mesmo: Estava entrando no quarto depois de um dia cansativo, quando o celular vibrou no meu bolso. Meu coração, que eu vinha conseguindo manter num ritmo razoável de bossa-nova, começou um batuque de escola de samba. Ainda bem que o hemisfério esquerdo do cérebro acordou a tempo e mandou o direito calar a boca, se não eu ia gritar ou fazer qualquer outra bobagem. Calma. É só o telefone.
– Alô?
– Oi, sou eu. Que foi, tava correndo?
– Correndo, eu? Não.
– E por que está respirando assim?
– Assim como?
– Desse jeito, oras. Ofegante.
– Ah. Me assustei com o telefone, acho.
– Com o telefone? Eu, hein...
– Como estão as coisas aí?
– Ah, uma maravilha! Minha mãe esteve aqui. Falamos sobre decoração. Ah, estou tão empolgada com isso! A Marininha me disse... (horas de fala ininterrupta) ... E agora tem o Natal e...
– Como?
– Hein?
– Que que tem o Natal?
– Ah. As lojas estão cheias. Fica difícil de achar as coisas e tal.
– Ah, sim. Por um momento achei que você estivesse pensando em decoração de Natal ou alguma coisa assim.
– Eu? Claro que não!
– Ah, que bom.
– Trabalhando muito?
– Demais. Acabei de chegar ao hotel, aliás. Estava trabalhando até agora.
– Puxa, até essa hora... Essa tal de Darcy não deve ser mole, hein?
Esse tal de Darcy, menina.
– O Darcy é homem? Ah.
– Por que o alívio?
– Alívio? Alívio nenhum. Só achei que fosse mulher e...
– ... E ficou com ciúme. Certo?
– Hum. Um pouquinho.
– Como você é boba. Mesmo que fosse mulher, não teríamos tempo para nada. Estamos trabalhando demais para isso.
– Tá bom então. Vou deixar você descansar.
– Estou com saudade...
– Eu também. Por falar nisso, comprei um conjuntinho igual aquele que a
Dona Maria Eugênia usou no dia do desfile...
– Ah, é? Que bom, podemos usar ao mesmo tempo! Será que eu fico bem de calcinha?
– Bobão. Modelo igual, não o tamanho. Vai dormir, vai.
– Vou sim. Com o Darcy.
– ARGH! Tchau!
– Beijo, querida.
– Outro.
Ciúme do Darcy. Era o que me faltava. Mas o telefonema me fez relaxar e até consegui esquecer um pouco que estava em território hostil (um hotel! Meu DEUS!). Ela me faz muito bem, às vezes.

9.12.02

Minha vida é engraçada. Haha. Deve ser muito legal de se assistir. Mas queria ver quem é que tinha coragem de entrar na minha pele por um dia. O último fim-de-semana, por exemplo. As novidades começaram já no fim da tarde de sexta-feira, quando me preparava para entrar mais uma vez no antro de assepsia em que se tornara o apartamento, e em vez disso me deparei com uma balbúrdia de flores, fitas, folhagens, papel crepom, e minha namorada no meio de tudo isso, feliz da vida.
– Oi. Que aconteceu aqui? Cadê aquela limpeza toda?
– Ah, não. Já vai começar a reclamar?
– Não, não tô reclamando! Só comentando. O que aconteceu aqui?
– Vai ter um desfile. Coisa da minha mãe. Só que com aquele negócio todo da reforma não vai poder ser na casa dela. Então resolvemos fazer aqui. Tudo bem?
Um desfile. Um bando de mulheres falando alto, rindo, fofocando, ocupando a sala por horas. Tenho trauma das reuniões de Tupperware que minha mãe fazia em casa, acho que nunca vou me recuperar. E agora minha namorada vinha me dizer que teríamos um revival do inferno em minha própria casa. Que beleza! Mas como aparentemente isso tinha feito bem a ela, dei a única resposta possível:
– Tudo bem, claro.
– Você é um amor. Olha isso aqui.
Entregou-me uma maçaroca de fitas e fitilhos. Comecei a procurar as pontas.
– O que você está fazendo?
– Tentando desembaraçar, oras. Você não quer ajuda?
– Desembaraçar o quê??? Isso aí é um LAÇO!
– Ah, claro. Um laço arrojado.
– Não tem nada de arrojado. É um laço.
– É. É um laço. Puxa, você leva jeito.
– Então você gostou?
– Claro! Muito bonito! – Há ocasiões em que a verdade deve ser suprimida em favor da harmonia doméstica.
– Que bom. Vou fazer todos seguindo esse modelo então.
– Legal. Mas... Hum. E esse desfile, hein?
– Já falei, é coisa da minha mãe. Um negócio de lingeries que ela está começando agora.
– Lingeries, é?
– É. Lingeries. Que cara é essa?
– Cara? Que cara?
– Você pensa que me engana, é? Tá achando que vai assistir o desfile? Pois pode ir tirando o cavalinho da chuva. Marca alguma coisa com o Jair, por mim vocês podem ir até para um bordel. Só não vai ficar aqui.
– Ok, tudo bem.
– É bom mesmo.
– Sua mãe já definiu a trilha sonora?
– Trilha sonora...?
– Sim, menina. Trilha sonora. Já viu desfile sem música?
– Ah, isso aí a gente vê na hora. Ela traz uns discos, eu pego uns daqui...
– Discos da sua mãe? Desfile ao som de Ray Connif e country dos anos 50?
– ARGH!
– Eu posso ficar responsável por isso aí.
– ...
– O que você acha?
– Ok. Tudo bem. Mas se ficar empolgadinho com as meninas, vai ver o que é bom pra tosse.
– Prometo me comportar.
– Prometo tentar acreditar.
Um desfile de lingeries na MINHA CASA! Era bom demais, meu Deus! E, puxa, será que a Marininha ia desfilar? Eu precisava ver a bunda da Marininha. Nada de canalhice, é que aquela cinturinha fina combinada com aquela bunda empinada, puxa, é um triunfo do design! Estimulado por tais pensamentos felizes, comecei imediatamente a escolher as músicas para a trilha sonora. Muito Marvin Gaye, Barry White e Solomon Burke, é claro. Lenny Kravitz, "Again" não podia faltar numa dessa. Trios instrumentais de bossa nova. Uma ou outra coisa de Be-bop. Modéstia à parte, uma bela trilha para o que prometia ser um belo desfile.
No dia seguinte, recebi minha sogra com honras de chefe de Estado. Ela estranhou minha presença, mas foi tranqüilizada pela filha, que explicou meu papel importantíssimo no desfile. Até que colou, mas por via das dúvidas ela achou melhor que eu ficasse atrás de um biombo improvisado com uns panos que ela tinha trazido. Sem problemas, tudo pela causa.
E começaram a chegar as convidadas. Primeiro as amigas da minha sogra: Dona Zefa, pernambucana de uns 50 anos que ainda dá um caldo, Dona Maria Eugênia, que quase não passa na porta, Dona Aracy, simpaticíssima, e várias outras donas de cujos nomes não me lembro. Vieram também as vizinhas de sempre e as amigas da minha namorada, entre elas a tão esperada Marininha. Foram todas para o quarto para as fofocas e os preparativos, enquanto eu aproveitava que estava de joelhos arrumando os fios para agradecer a Deus por tamanha oportunidade. Agradeci cedo demais...
Depois de um tempo que pareceu uma eternidade, minha sogra veio lá de dentro. Botei a gravação de "Wave" do Tamba Trio para tocar e ela começou a apresentação. Enquanto ela falava, eu aproveitava para ajeitar aqueles fios todos, então não prestei muita atenção no discurso inicial. Quando ela disse "Vamos começar, então", botei pra tocar "Legal Man", do Belle & Sebastian e ela anunciou:
– Na passarela, Maria Eugênia!
E eu pensava:
– Maria Eugênia. Hum. Uma xará. Só pode ser. Meu Deus, que seja uma homônima. NÃO!
Não era. Dona Maria Eugênia toda sorridente com os peitos enormes apertados num espartilho branco. Quando ela fez a volta no fim da passarela e veio na direção do meu biombo, me senti como o iceberg vendo o Titanic se aproximar. Como diria Drummond, nunca me esquecerei desse acontecimento na vida de minhas retinas tão fatigadas.
E assim foi minha tarde de sábado, trocando CDs e vendo aquelas senhoras desfilando apenas com suas roupas de baixo na maior naturalidade. Quando Dona Zefa entrou na passarela num conjunto vermelho, fiquei até feliz. Primeiro porque já era o fim do desfile, e depois porque Dona Zefa dá MESMO um caldo. Pelo menos se comparada às outras top models do Baile da Saudade. E quando todas se preparavam para ir embora (já vestidas, graças a Deus), ela ainda veio elogiar a trilha sonora do desfile e fiquei de copiar uns CDs do Belle & Sebastian para ela. Ah, com esse charme todo eu só queria ter nascido uns trinta anos antes.
É claro que depois que todas foram embora tive que suportar os ataques de riso e a chacota de minha querida namorada. E nem vi a bunda da Marininha...

Às vezes parece que o Diabo fica entediado lá no inferno e vem até a Terra para se divertir às nossas custas. Foi o que aconteceu há três di...